Esportes

Como é pedagógico ouvir
os treinadores de futebol!

DANIEL LIMA - 24/11/2023

Especificamente no meu caso, de viver do acumulado de informações, da rastreabilidade crítica de informações, da curadoria sistemática da informações, ouvir as declarações dos treinadores de futebol, principalmente pós-jogos, é um grande espetáculo. Que se mistura a aprendizado permanente.  

Talvez o leitor não tenha a mais ínfima ideia, mas nutro paixão especial por táticas e estratégias no futebol. Acompanhar um jogo de futebol é muito mais que prender os olhos à televisão. É prender à mente à dinâmica do jogo. É, como numa peça de teatro, contar com informações pretéritas que alimentam conjecturas que explicam o resultado final.   

Digo aos mais próximos que não há razão alguma de assistir a um jogo de futebol se não houver colado a isso o desafio de descobrir os meandros que ajudam a explicar o resultado final. Nada é por acaso, por mais que o acaso faça parte do jogo.  

OUVINDO A VIDA  

Passei a vida inteira ouvindo terceiros para construir textos reprodutores de entrevistas ou análises dessas mesmas informações. Carrego essa premissa a todas as temáticas.  Da mesma forma que registrei ao longo da vida centenas de entrevistas com empresários e políticos, principalmente, não abro mão de ouvir os técnicos de futebol. 

As facilidades tecnológicas me trazem na palma da mão, ou ao alcance dos ouvidos, num smartfone, o que dizem os treinadores das principais equipes brasileiras. Ouço-os com toda a atenção. Se tenho passado a vida nos últimos três anos a prestar mais atenção a mim mesmo, por que não o faria em relação a terceiros?  

A maturidade principalmente quando impulsionada por um trauma favorece um mergulho mais profundo em direção a situações que entendemos como pedagógicas. 

ATENÇÃO REDOBRADA  

Ouço e vejo os técnicos de futebol durante o período em que estou preparando o almoço e o jantar de minhas cachorras. Também ouço e vejo programas que normalmente jamais assistiria, não porque não sejam interessantes, mas sobretudo porque reservo mesmo a hora da comidinha dos caninos à compulsoriedade do smartphone. 

Pois vou dizer sem qualquer sombra de dúvida que o Palmeiras de Abel Ferreira não é o que é, o melhor e mais organizado e equilibrado time do futebol brasileiro há três temporadas, por obra do acaso. A vitrine palmeirense é o técnico Abel Ferreira.  

As entrevistas de Abel Ferreira a cada final de jogo é um show de coerência, didatismo, organização mental e sinceridade, sem contar a sensibilidade desse português notável.  

Acompanho Abel e outros treinadores com lupa porque não poderia jamais perder a oportunidade de compreender o que se passa muito além das quatro linhas.  

Não vou reproduzir aqui e agora a característica de cada um dos principais treinadores brasileiros, casos de Dorival Júnior, Mano Menezes, Tite, Renato Portalupe e outros tantos. Eles expõem algumas facetas da diversidade humana.  

Eles têm características especificas, individuais. São espelhos do que encontramos na sociedade, nas corporações, nas relações humanas do cotidiano.  

E OS PREFEITOS?  

Não sei por que, mas toda vez que ouço os treinadores fico imaginando o quanto seria bom ter algo semelhante na área política, com os prefeitos da região, individualmente, enfrentando entrevistadores que pretenderem tirar dúvidas para valer. Quantas perguntas teria a fazer a todos eles, principalmente aos que estão há mais tempo à frente das prefeituras?  

Entretanto, nenhum deles jamais se submeteria às chamadas entrevistas coletivas. É um pena. Eles teriam muito a ganhar com isso. Claro que também correriam riscos enormes. Sobretudo um e outro bajulado o tempo todo, que têm uma conta-corrente de facilidades de veículos adocicados.  

Já cheguei a dar essa sugestão num certo artigo escrito há algum tempo mas não custa atualizá-lo. Agora tenho mais conhecimento, por dizer assim, sobre uma prática corriqueira no futebol, ou seja, a obrigatoriedade, em nome da própria regulamentação das competições, de os técnicos de futebol se submeterem a entrevistadores coletivos.  

ENTREVISTADOS À FRENTE  

É verdade que essas coletivas esportivas têm fragilidade de conteúdo, mas mesmo assim não esterilizam a possibilidade de servirem de ponte a informações até então pouco divulgadas ou mesmo censuradas.  

A quase totalidade dos profissionais de imprensa que se colocam como entrevistadores forma a turma menos experiente da praça. Eles, os jornalistas, são profissionais incapazes em larga escala de fundamentarem questões. São tão pouco habilidosos a ponto de se converterem em puxadinhos de elogios aos treinadores ou pecarem pela esterilidade nos questionamentos. 

De maneira geral, as entrevistas coletivas valem muito mais pelo que dizem os treinadores do que pelo que perguntam os entrevistadores.  

Parece estranha essa equação, mas é isso mesmo. Os comandantes das equipes normalmente vão além de questões abordadas ou as aprofundam de modo mais incisivo até por conta da própria qualificação profissional.  

MAIS PREPARADOS  

Afinal, eles precisam levar a público a competência de que não são meros distribuidores de camisas. Ou alguém defenderia uma surradíssima e superada máxima do futebol de que técnico não ganha jogo? Ganha, empate e perde.  

Na média geral dos embates ou dos encontros entre entrevistadores e entrevistados do mundo esportivo, os treinadores são mais preparados e bem melhores que os entrevistadores.  

O nível de conhecimento da matéria é relativamente pobre entre os jornalistas da linha de frente em relação ao grau de apetrechamento dos treinadores.  

Louco que sou por futebol no sentido tático e estratégico de ser, faço o que é possível para acompanhar as entrevistas coletivas enquanto o microondas dá conta de esquentar a comida de minhas cachorras ou, antes disso, enquanto preparo a cenoura, a beterraba, o arroz integral e uma porção de peixe para levar ao microondas. Minhas cachorras não podem se alimentar de ração.  

Jamais me permitiria fazer o que faço para minhas cachorras se permanecesse com a cabeça de vento enquanto preparo os dois pratos a serem servidos em seguida.  

RITUAL DIÁRIO  

Da mesma forma que não tiro os ouvidos do que diz o smartfone, porque não gosto de perder uma frase sequer dos entrevistados, nem tampouco a pergunta de cada entrevistadores, minhas cachorras, à média distância, acompanham meus movimentos e, acreditem, conhecem de tal maneira o ritual de preparação que sabem exatamente quando vou bater as duas cumbucas no balcão para avisá-las de que o almoço ou o jantar está pronto para ser servido. 

Você pode achar tudo isso meio sem graça, mas para quem vive de informação e para quem não admite perder um segundo sequer da vida, cumprir esse ritual é uma dádiva.  

Meus pensamentos estão permanentemente em ação, acionando a cognição em contraste com a apenas aparente mecanicidade funcional de preparar a alimentação sagrada de cada jornada.   

Tanto é verdade que, se quisesse agora, desfilaria a individualidade de cada um dos treinadores que tenho ouvido há muito tempo durante os 20 minutos de cada refeição de minhas cachorras.  

LUXEMBURGO E A BOLA  

Um exemplo? Vanderlei Luxemburgo, recentemente contratado e demitido no Corinthians, passava o tempo inteiro brigando com os repórteres. Havia constrangimento generalizado. Luxemburgo exagerava ao dramatizar questões que não tinham lá alguma importância.  

Mesmo reconhecendo que Luxemburgo tem o discurso envelhecido não por causa da idade, mas do comodismo de quem imagina não ter mais o que aprender, não se pode cometer o erro de subestimá-lo e entender que já dobrou o cabo da boa esperança.  

Guardei na memória várias intervenções de Vanderlei Luxemburgo que o tempo tratou de descartar como ativo. Mas também ficaram lembranças interessantes.  

A constatação de Luxemburgo de que o Corinthians envelhecido não daria conta do recado do futebol de velocidade, combate, agudeza e intensidade das principais equipes brasileiras poderia parecer óbvia, mas alguém, como ele, sabia a extensão dessa característica.  

Tanto é verdade que só encontrava uma saída para amenizar as adversidades dentro de campo. Luxemburgo pregava o tempo todo a necessidade de a equipe ter o controle tático do jogo. E o controle tático do jogo só seria exercido com a posse de bola. Uma tarefa ingrata. 

DINIZ E A BOLA  

No Fluminense de Fernando Diniz a mobilização para o controle da bola e do jogo não se dá exclusivamente porque a equipe também conta com vários jogadores acima dos 30 anos. Diniz adaptou o conceito ao que já introduzira há muito tempo nas equipes que dirige, concentrando o máximo de jogadores em determinadas áreas do gramado e, na medida do possível, surpreendendo o adversário com inversões letais.  

Como se vê – e há outras concepções sob a doutrina da chamada posse de bola – o futebol comporta elasticidade tática mesmo que aparentemente sob o mesmo guarda-chuva operacional.  

Mano Menezes, agora no Corinthians, imprimiu novas metodologias de preparação física numa equipe que, além de envelhecida, também estava abaixo das condições de preparação do fôlego. Melhorou o coletivo, mas o risco de oscilações segue em frente.  

ABEL ESPETACULAR  

Um time de jogadores envelhecidos que controla taticamente os jogos parece ter o Fluminense como exemplar único. Ganhou a Libertadores com cinco titulares acima dos 30 anos. Mas nesse caso, não custa lembrar, há um componente decisivo: a formação da equipe ao longo de dois, três anos, e a característica especial já mencionada de atuar sob a égide da aproximação espacial dos jogadores, construindo jogadas curtas e, de vez em quando, invertendo as ações em direção a algumas opções de velocidade.  

Já o Palmeiras de Abel Ferreira é um bólido tanto com bola como sem bola, com verticalidade ou com troca de passes rápida e aguda.  

A velocidade combinada com a objetividade e o fortalecimento contínuo de opções ofensivas com jogadas de laboratório, sobretudo de bolas paradas, em escanteios, faltas ou cruzamentos, torna o Palmeiras não só o time mais pragmático do futebol brasileiro, mas, também, o mais vigoroso modelo de objetividade coletiva a serviço da individualidade e também a individualidade a serviço de coletivismo.  

O modelo funcional do Palmeiras é tão espetacular que faz de jogadores regulares grandes jogadores e de grandes jogadores, jogadores arrebatadores.  



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