Sociedade

ENCRUZILHADA MUITO
MAIS QUE ATORDOANTE

DANIEL LIMA - 17/04/2025

Tenho anotações de pautas ou pré-pautas temáticas que ultrapassam a duas dezenas de assuntos. Está no meu smartfone. A cada nova ideia, geralmente retirada do noticiário regional, mas não só do noticiário regional, quando não da corrida diária, aciono o aparelho para registro. Não se deve confiar na memória. O problema é que não dou conta do recado. Há novas inserções em volume maior que o cumprimento de tarefas.

Esse texto, por exemplo, não deveria estar aqui, porque não constava da lista. Mas entrou na lista ontem à noite. Precisamente após assistir ao podcast do Diário do Grande ABC com Rafael Demarchi, secretário de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo. O moço vai levar o prefeito Marcelo Lima à falência no Ranking de Mentiras e Meias-Verdades dos Prefeitos da região.

Na primeira vez que Rafael Demarchi concedeu uma entrevista combinada, ao podcast ABCemOFF, foi um desastre. Na segunda, ontem, igualmente combinada, repetiu a proeza de superar o que parecia insuperável.

INGENUIDADE E ILUSIONISMO

Não vou destrinchar a entrevista de Rafael Demarchi nesta edição. Os novos percalços de um jovem que mistura ingenuidade com ilusionismo em detrimento de objetividades plausíveis serão assunto para a edição de amanhã. E, na semana que vem, terá a nova batelada de inconformidades registrados no balanço geral do ranking de fake news.

Vou além da nova exposição desastrada do secretário da Capital Econômica do Grande ABC. Faço uma projeção que o envolve e também a outros escolhidos pela turma dos prefeitos para cuidar do Desenvolvimento Econômico do Grande ABC.

O leitor vai entender logo onde pretendo chegar. Suponho ter mais uns 20 anos de vida. Estou no meio do terceiro ciclo vital probabilístico, salvo novo tiro, agora fatalíssimo, ou algo semelhante. O terceiro ciclo de vida começa aos 60 anos. Qual é a perspectiva do cidadão que também é jornalista ver a situação do Grande ABC alterar-se tão agudamente a ponto de a degringolada que não cessa dar um cavalo de pau e, finalmente reagir?

A pobreza intelectual e prática de Rafael Demarchi, bem mais jovem do que eu, não parece apropriada a colocá-lo como ponta de lança do reformismo que a região tanto carece. Não apenas ele, mas seus parceiros de cargo nas demais cidades da região. Estaríamos, então, fadados ao agravamento social da região? Sem dúvida.

ANOS DOURADOS

Vejam que situação vivemos todos que já ingressamos no terceiro ciclo ou que estão próximo a isso. No final da década de 1990, quando Celso Daniel era o grande farol da regionalidade, havia agentes públicos e privados que acenavam com alguma luminosidade a novos tempos institucionais, que gerariam conquistas econômicas e sociais. Não vou relacionar os nomes porque alguns serão involuntariamente esquecidos. Mas havia gente prontíssima para uma empreitada de fôlego.

Coincidentemente, foi na década mais duramente debilitadora do Grande ABC, a década dos anos 1990, com a sequência de Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o período em que fervilhavam lideranças dispostas ao bom combate. A morte de Celso Daniel é um divisor de águas. A institucionalidade oficial, no âmbito das prefeituras, virou pó num processo gradual e irresistível.

Uma série de outras mudanças nas duas décadas seguintes nocauteou de vez o espirito de combate organizado no Grande ABC. Muito mais que isso: substituiu-se uma camada de sobreviventes do espírito de Celso Daniel, de regionalidade sem condicionantes, por grupamentos abusivos na conjugação de descasos e oportunismos.

UMA SAFRA SOFRÍVEL

A safra atual de agentes institucionais políticos e econômicos do Grande ABC é a pior de todos os tempos. O marketing pelo marketing que significa enganar o distinto público tomou conta do barraco do que sobrou do período anterior.

Essa situação de ambiente corrosivo a qualquer pretensão de mudança de figurino, principalmente porque os marqueteiros são agentes políticos utilizados pelos políticos para usar e abusar do interesse público, coloca este jornalista num cabo de aço de difícil equilíbrio entre duas torres comerciais a dezenas de  metros de altura.

Vivo sob imensa dúvida e creio que outros participantes da vida regional, mesmo sem a mesma exposição deste jornalista, provavelmente sentem o mesmo: valeria a pena continuar uma saga de combate às inutilidades regionais e à pregação de medidas corretivas ou seria mesmo muito mais ajuizado abandonar o tablado, saltar rumo a alguma cidadezinha do Interior (Salto me aguarda há muito tempo) e deixar que os abutres tomem de vez o território regional?

VOZ E PODER DE BRASÍLIA

Acho que tenho capacidade de resiliência doentia, por mais paradoxal que isso possa sugerir. Também por razões que já cansei de explicar, entre as quais a democratização de uso desses aparelhinhos de bolsos e bolsas que mantém usuários plugados no mundo inteiro, a sociedade regional caiu no samba da alienação completa.  

Raríssimos são os eventos que batem à porta para sinalizar que se vive no Grande ABC, não em Brasília. Os administradores públicos, protegidos pela centralidade da política nacional, podem fazer o que bem entenderem. As redes sociais de uso local estão coalhadas de debates entre bolsonaristas e lulistas, de vídeos entre bolsonaristas e lulistas, de tudo dessa polaridade sem fim.

A dispersão de opinião no Grande ABC é um prato cheio aos malversadores. Grupelhos organizados e a mando de determinados políticos parecem maioria nas redes sociais. De fato, entretanto, são minorias ativas  que afastam dos debates quem não suporta mais o ambiente macropolítico nacional.

SOCIEDADE CALADA

Há transformações para pior no quadro regional. Puxo um exemplo emblemático do esvaziamento crítico local, que cedeu espaço a litigantes da política nacional. No primeiro mandato do prefeito Paulinho Serra, em Santo André, houve reação estridente com mobilização física em direção ao Paço Municipal por conta de aumento abusivo do IPTU. O prefeito teve de recuar. Nos anos seguintes, ante aumentos abusivos em contraponto à quebra de riqueza da sociedade, comprovada em qualquer estudo sério, ninguém moveu uma palhinha sequer de contrariedade mobilizadora.

A sociedade do Grande ABC está morta no Grande ABC e vivíssima em Brasília. Está do jeito que o diabo gosta para quem quer o controle político, administrativo e social à frente do Clube dos Prefeitos, por exemplo. Há refinamento na placidez de desinteresse da sociedade servil e desorganizada. A estridência dos inconformados desapareceu. O empobrecimento pós-segundo mandato de Lula da Silva, em níveis gravíssimos, não deixou qualquer resquício de movimentação voluntária em busca de saídas.

SEM RETOMADA

Quem imaginar que seria possível, entre outros pontos, retomar a historia do Fórum da Cidadania, por exemplo, sofrerá imensa decepção. O Fórum da Cidadania foi um movimento da elite dos dirigentes de dezenas de entidades sociais e privadas da região, lançado em 1994 em defesa do voto regional. Independentemente de ter-se perdido na proposta inédita e por isso mesmo vulnerável, ou seja, sem experiências com as quais queimaria etapas, o Fórum da Cidadania foi importante porque pulsava capital social equalizador do ambiente do Grande ABC.

Tanto é verdade que o Fórum da Cidadania foi por algum tempo um divisor de águas na região que,  por praticamente coincidir com a ascensão de Celso Daniel, motivou o prefeito de Santo André a engrenar reação do poder público. Tivemos durante algum tempo uma concorrência seguida de compartilhamento saudável pelo controle da massa crítica regional.

A entrevista de Rafael Demarchi ontem ao Diário do Grande ABC na versão eletrônica me fez pensar em tudo isso ou mais precisamente me fez repensar sobre tudo isso. Estamos entregues às baratas. Mediocridades usam expressões tecnocráticas, por assim dizer, com a finalidade de tapar o buraco de desconhecimento das premissas básicas.  

ENTREGUE ÀS BARATAS

Chegamos ao estágio de desolação regional. Estamos adubando cada vez mais o terreno à consecução de fundamentos farsescos. Teríamos a consagração de improdutividades, abusos e procrastinação com tamanha sofisticação e submissão social que não restaria aos incautos saída senão comemorar  a glorificação de agentes espertalhões  fraudadores de sonhos e realizações.

O terceiro ciclo de vida de quem viveu intensamente os anos 1990 do então mais interessante laboratório social do País caminha para se tornar ainda mais alarmante. Há dois destinos a seguir: o sofrimento de acompanhar em cores e ao vivo uma nova etapa de degringoladas travestidas de sucessos oupicar a mula. Vamos tratar na edição de amanhã da aula magna de embromações do secretário detentor de uma culinária econômica indigesta.



Leia mais matérias desta seção: Sociedade

Total de 1102 matérias | Página 1

10/04/2025 BANDIDOS DÃO AULA DE ECONOMIA A ESTUDANTES
04/04/2025 O QUE ENSINAM OS CASOS SAUL KLEIN E DANIEL ALVES?
25/03/2025 CRIMINALIDADE: POR QUE NÃO SENTIMOS MELHORA?
12/03/2025 TURISMO DESINDUSTRIAL SERIA MAIS PEDAGÓGICO
22/01/2025 ELASTICIDADE DE FAKE NEWS
21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!
20/01/2025 CELSO DANIEL NÃO ESTÁ MAIS AQUI
19/12/2024 CIDADANIA ANESTESIADA, CIDADANIA ESCRAVIZADA
12/12/2024 QUANTOS DECIDIRIAM DEIXAR SANTO ANDRÉ?
04/12/2024 DE CÃES DE ALUGUEL A BANDIDOS SOCIAIS
03/12/2024 MUITO CUIDADO COM OS VIGARISTAS SIMPÁTICOS
29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO
19/11/2024 NOSSO SÉCULO XXI E A REALIDADE DE TURMAS
11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS
08/11/2024 DUAS FACES DA REGIONALIDADE
05/11/2024 SUSTENTABILIDADE CONSTRANGEDORA
14/10/2024 Olivetto e Celso Daniel juntos após 22 anos
20/09/2024 O QUE VAI SER DE SANTO ANDRÉ?
18/09/2024 Eleições só confirmam sociedade em declínio