Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Que as futuras gerações
perdoem nosso voo cego

EDISON MOTTA - 16/09/2008


Mergulhar no futuro desconhecido pode ser encantadora utopia. Podem-se construir os castelos que a imaginação alcança, adornar com grandes tesouros e edificar um mundo de confortáveis fantasias.


Porém, com um pé na realidade do presente e um pouco de conhecimento do passado, é preciso ser muito otimista para não imaginar a evolução e o agravamento do caos em que nos encontramos. Não há nenhum indicador, no momento, que permita sonhar com um Grande ABC livre dos principais problemas nas próximas décadas. Isso pelo simples fato de que não existem esforço coletivo e tampouco mecanismos institucionais que possibilitem, ao menos, montar um planejamento sobre a estrada que vamos percorrer logo mais à frente.


No início dos anos 1970, a pequena redação do Diário do Grande ABC estava instalada na Rua Catequese em Santo André, numa casa de quatro cômodos que já não existe mais, a poucos metros do terreno que abrigava as oficinas e escritórios do News Seller e onde seria construído o imponente edifício do jornal. Numa tarde quente de verão lá apareceram dois leitores indignados. Eram Fernando Vitor de Araújo Alves e Jorge Ubirajara Cardoso Proença, moradores do Bairro Eldorado, em Diadema. Acabavam de criar a Comissão de Defesa da Billings, uma entidade civil rara nos tempos de regime militar.


A indignação de ambos era a degradação da represa, outrora aprazível local de lazer onde empresários da Capital construíram casas de veraneio às suas margens. Ali se praticavam esportes náuticos nos anos 1950 e até mesmo florescia uma incipiente indústria de construção e reparos de embarcações. Porém, o crescimento vertiginoso da produção industrial da Grande São Paulo e a decisão de tecnocratas, abraçada pelo governo, de reverter o curso do Rio Pinheiros para jogar suas águas na Billings e, com isso, garantir o volume necessário para fazer girar as turbinas da Usina Henry Borden, de Cubatão, para produção de energia elétrica, destruíram os melhores sonhos dos desencantados moradores do Eldorado. O paraíso agora estava sendo um verdadeiro inferno malcheiroso e impregnado de ratos e insetos, recebendo águas putrefatas do esgoto da Região Metropolitana.


Eram tempos em que não se falava de defesa do meio ambiente. O milagre econômico brasileiro pulsava com intensidade nas chaminés das fábricas do Grande ABC com seus equipamentos obsoletos e poluentes, grande parte importada como sucata do Primeiro Mundo. O eldorado, para muitos, era transferir-se das zonas rurais e da seca inclemente dos Estados do Nordeste, de Minas, do Paraná e do Interior paulista para local onde existiam muitos empregos.


Fernando Vitor e Jorge Ubirajara estavam na contramão da tendência generalizada do momento. Sentiam na própria pele que o desenvolvimento tão apregoado pelos defensores das chaminés acabaria por alcançar, mais tempo menos tempo, toda a sociedade. Eles eram só as primeiras vítimas. Muitas outras viriam.


Foi o que aconteceu. A poluição da Billings tornou-se de tal forma avassaladora e insuportável que, duas décadas depois, foi efetivamente enfrentada. A Constituição Estadual de 1988 proibiu a reversão do Pinheiros e o bombeamento dos esgotos para a represa porque se descobriu que o manancial tinha importância maior do que servir à produção de energia elétrica. Moradores do Grande ABC e de parte da Grande São Paulo precisavam da represa como reservatório de água.


A Billings foi poluída sem que qualquer
político opinasse. Assim será com o
tráfego que o Rodoanel despejará em Mauá


Na verdade, o bombeamento diminuiu, mas não cessou de vez. Ainda é utilizado nos dias atuais conforme decisões técnicas — ou tecnocratas — sobre as quais a sociedade pouca informação recebe. Ao mesmo tempo, ainda vai demorar para que as águas da Billings sejam consideradas livres da poluição. O adensamento populacional e a expansão irrefreada sobre as áreas de mananciais, no entorno da Billings, trouxeram outro problema tão grave como o primeiro: agora, é o esgoto das precárias habitações construídas nas áreas invadidas que compromete a represa, de vital importância para o suprimento de água aos mais de 2,5 milhões de habitantes da região.


A história da Billings ilustra o que acontece em praticamente todos os setores de nossa região. Decisões de vida ou de morte são tomadas em escalões onde a sociedade e a cidadania não têm acesso. Não que existam barreiras legais ou força militar que impeçam. O que existe é uma apática distância entre o cotidiano dos moradores e os mecanismos institucionais de nosso regime democrático.


O Grande ABC — como de resto toda a Grande São Paulo e as regiões metropolitanas do País — embarcaram num vôo cego sem qualquer rumo planejado para o futuro. Existe um conflito natural entre autonomia municipal e questões regionais. A água, a coleta e destinação dos esgotos, do lixo, o trânsito, a saúde, educação, habitação, o meio ambiente e até mesmo o lazer estão interconectados na região. Não há como tratar essas questões de forma isolada, no âmbito municipal.


A represa Billings foi poluída sem que qualquer vereador ou prefeito pudesse opinar sobre seu destino. Assim está acontecendo com a construção do elo sul do Rodoanel Mário Covas que vai despejar em Mauá o tráfego pesado de carretas e caminhões que atravessam o País de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Incompleto nesta primeira fase, ainda longe da Via Dutra e da Rodovia Ayrton Senna, o anel (in)viário fará com que a região importe o grave problema que hoje congestiona as marginais dos rios Tietê e Pinheiros e também a Avenida Bandeirantes, na Capital.


Ainda nos anos 1970 foi iniciada a obra de coletores de esgotos ao longo do Rio Tamanduateí e Ribeirão dos Meninos. O projeto é retirar despejos até agora jogados in natura nesses afluentes do Rio Tietê para tratamento na Estação de São Caetano. Ocorre que ainda falta interligar a grande maioria das tubulações que deságuam nos afluentes para conectá-las aos emissários. Quando isso irá acontecer? Não há autoridade em qualquer dos escalões administrativos capaz de responder à pergunta. Significa que a população da região ainda terá de conviver durante muito tempo com seus principais rios poluídos.


Prefeituras não têm jurisdição sobre águas e, conforme a Lei Orgânica dos Municípios, estão impedidas de aplicar um único centavo na recuperação de seus rios. Soluções paliativas são adotadas aqui e ali, como a canalização de córregos, algo como varrer o problema para debaixo do tapete.


Situações assemelhadas acontecem com a destinação final do lixo. Cada qual procura resolver à sua maneira. Ocorre que São Caetano já não dispõe há muito tempo de espaço para tratar dos próprios resíduos. Por enquanto socorre-se de Mauá, mas até quando? Na divisa da Zona Leste da Capital com Mauá a construção de novo aterro sanitário está tirando o sono dos moradores das imediações.


Nos tempos antigos, um slogan era muito conhecido dos paulistas: o de que “São Paulo não pode parar”. Até que o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, um competente urbanista transformado em interventor da Prefeitura paulistana pelo governo militar, teve a lucidez de contrariar a corrente ufanista e declarar que São Paulo precisava, sim, parar. Para pensar e para planejar o futuro. Não é diferente com o Grande ABC.


O Consórcio Intermunicipal de Prefeitos e a Agência Regional de Desenvolvimento Econômico jamais conseguiram ordenar nem mesmo uma pauta de prioridades para o futuro regional. Não se pode, a bem da justiça, penalizar os prefeitos e técnicos que formam os quadros das duas instituições. Porém, a raiz do problema é que não dispõem de autonomia legal, institucional e nem mesmo de recursos para enfrentar o que seria sua verdadeira missão.


Vivemos o céu e o inferno nos
últimos 30 anos e ainda não
paramos para pensar os próximos 30


Nosso eldorado tupiniquim ufana-se de ser o terceiro maior mercado potencial de consumo do País. Recuperou o pulsar desenvolvimentista após o susto e a desconstrução da década de 1990. Vivemos o céu e o inferno nos últimos 30 anos e ainda não paramos para pensar como serão os próximos 30. No momento, preocupam a população os problemas da saúde, da violência e o congestionado trânsito de nossas ruas e avenidas, além da falta de transporte coletivo com dignidade.


Mas alguém já parou para pensar que esses problemas sentidos no dia-a-dia são apenas a ponta de um gigantesco iceberg? Que não se resolvem com medidas isoladas deste ou de outro Município?


É razoável pensar que nada vai mudar enquanto a sociedade, cada cidadão, não se preocupar em formar uma massa crítica e se organizar politicamente para exigir mudanças. E são mudanças profundas que devem começar com revisão da Constituição Federal. As regiões metropolitanas e suas subdivisões (no caso, o Grande ABC é formalmente a Região Sudeste da Grande São Paulo) precisam deixar o papel e passar a existir de fato e de direito.


No regime militar, ainda nos anos 1970, foram criadas no âmbito do governo do Estado a Secretaria de Negócios Metropolitanos, a Emplasa (empresa pública destinada ao planejamento), o Consulti (Conselho Consultivo da Grande São Paulo) e o Codegran (Conselho de Desenvolvimento) — formulações teóricas e tecnocratas que serviram, tão-somente, para acomodar apadrinhados políticos. Há um conceito generalizado de que a classe política é o espelho da sociedade. E será melhor ou pior conforme a cidadania tiver ou não interesse em assumir as rédeas do próprio destino.


Para que o Grande ABC construa o futuro e evite a repetição de erros como o da Represa Billings — que, infelizmente, ainda ocorrem em todos os rincões do País — será necessário um novo despertar dos habitantes. Que os seres humanos aqui residentes acordem, deixem de ser autômatos e escravos da noção de que progresso é apenas e tão-somente dinheiro. Afinal, de que vale um bom emprego se o acesso, desde o momento em que se deixa a residência com destino ao trabalho, é uma perigosa aventura? Uma partida onde não se tem certeza da volta? Uma verdadeira maratona diante do caos do trânsito, da epidemia egocêntrica do individualismo, sob o terror da criminalidade cada vez mais violenta?


Estamos todos embarcados numa grande nave espacial que faz vôo cego. Os que podem, andam escondidos atrás de vidros escuros, recolhidos no interior de carros blindados. Ofuscados pela reluzente ilusão de shopping centers cada vez mais sofisticados, uma precária e fútil sensação de segurança que faz lembrar, para quem tem alguma consciência, a precariedade social da decadente qualidade de vida em que, apáticos, estamos inseridos.


Os pivetes colocados à margem da ilusória opulência de uma sociedade apartada do coletivo — e, portanto, sem compromissos com a cidadania — estão à espreita, destilando fel nos corações, nas esquinas e nos cruzamentos de nossos caminhos. Desprezamos os erros do passado e não temos nenhuma noção para onde estamos indo como coletividade. Porque, ao abrir mão da cidadania, não valorizamos a democracia — tão arduamente conquistada por muitas lutas e até mesmo por sangue dos resistentes — e não temos humildade de perguntar e aprender, nos países desenvolvidos, o que podemos fazer para construir o cenário que vamos deixar às futuras gerações. Oxalá sejamos perdoados por nossos filhos e netos.


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