Regionalidade

Quem não quer ver do alto
caos logístico da região?

DANIEL LIMA - 22/06/2023

Respondendo à pergunta da manchetíssima de hoje, que tem tudo a ver com debates sobre o Plano Diretor de Santo André, a reboque do Plano Diretor de São Paulo, respondo sem vacilo: embora deteste tudo que está acima de minha cabeça, gostaria imensamente de ter uma companhia em pelo menos três voos de helicóptero num mesmo dia.  

Vou explicar as razões e o leitor vai entender. Tanto vai entender que também, provavelmente, gostaria de participar da jornada aérea.  

Minhas noites depois do tiro são tão entrecortadas que aproveito muito cada intervalo entre vigília e sono escalonados para reflexões.  

E nesta noite fiz exatamente isso. Pensei muito numa foto de um dos urbanistas contratados no final do século passado para desenhar o Projeto Eixo Tamanduatehy.  

O flagrante ficou para a história de Santo André, com Celso Daniel e esse urbanista internacional num voo que diagnosticava a Avenida dos Estados e entorno.  

LÁ EMBAIXO 

Pensei comigo mesmo nesta noite que seria interessante se participasse de um voo semelhante, mas muito mais abrangente, porque regional, contando com a companhia do urbanista carioca Sérgio Magalhães. Depois conto quem é Sergio Magalhães. 

O principal mesmo é que sugeriria um voo de manhã, outro no começo da tarde e o terceiro por volta de 18h30. Meia hora cada um, acredito, seria suficiente para recolherem-se imagens fotográficas e em vídeo, além de conteúdo analítico verbal do especialista em questão,  para que se obtivesse algo que chamaria de esboço do ABC Paulista visto do alto.  

A missão se concentraria apenas e exclusivamente no que se passa lá embaixo em matéria de logística de transporte, de acessibilidade, essas coisas que fazem a diferença e tornam o Custo ABC acréscimo doloroso que explica a debandada industrial e também afuga de empreendimentos mais sofisticados na área de serviços.  

JUNTO E MISTURADO  

A indivisibilidade prática do território regional é algo escancarado. A conurbação é notória, ou seja, não se sabe onde começa e onde termina cada cidade. Por isso não tem sentido o desprezo das autoridades locais. 

Falar em Plano Diretor sob o ponto de vista municipalista, por imposição legal, é seccionar as veias de comunicação material que entopem qualquer projeto desenvolvimentista e reestruturante do tecido regional de 840 quilômetros quadrados de extensão.  

Vivemos esquartejamento viário agravado ao longo dos anos pela incúria imobiliária incrementada por prefeituras desatentas, quando não e principalmente vorazes, diante de agentes privados que se refestelam com lobbies escancarados e ainda dão de braçadas de falsa solidariedade ao incrementarem projetos sociais dissimulatórios.  

Sei que sei que o ABC Paulista visto das alturas sob esse ponto de vista de curiosidade, vamos dizer assim, seria um espetáculo dantesco, semelhante, mas não tão intenso como o da Capital.  

CINDERELISMO  

A diferença de volume de veículos no tráfego torna a situação da Capital mais grave. A proporcionalidade de frota própria dividida por quilômetros de vias públicas é mais densa na vizinha cinderelesca. É melhor nem falar de frota circulante de invasores. 

A distinção, entretanto, avança. Cinderela é Cinderela e pode até mesmo comportar tanta insanidade. De alguma forma, a Capital não perde o viço da atratividade. Já no ABC Paulista é história é outra. Ou seja: contar com um agregado de equívocos de planejamento urbano da Capital é a repetição de fracassos sem, entretanto, contar com  virtudes comparativas da Capital em atratividade de negócios.  

Qualquer pesquisa sobre os cinco maiores problemas do ABC Paulista detectará que o sistema viário, traduzido como logística interna, é um inferno e nos torna reféns de um contínuo crescimento de desvantagens em relação a outros territórios da Região Metropolitana de São Paulo.  

NOVO CONCEITO  

Basta ver o quanto fomos prejudicados com a chegada do Rodoanel em seus vários trechos. A logística interna, ou seja, no interior de cada Município da região, é um pedaço do conjunto de uma desordem e de um descalabro regional aparentemente insolúvel.  

Estar fisicamente próximo do Rodoanel, dos aeroportos e do Porto de Santos é conversa fiada de quem não entende nada de logística.  

Mais que o caminho mais curto entre dois pontos, a melhor logística é a logística produtiva, que vem a ser o melhor caminho entre dois ou mais pontos.  Distâncias físicas, portanto, perderam prazo de valida conceitual.  

Como a regionalidade do ABC Paulista é uma quimera, não resta outra saída senão rezar.  

VASOS COMUNICANTES  

Nem mesmo um extraordinário movimento municipal de reestruturação do tecido local com a aplicação de um Plano Diretor revolucionário resolveria a questão. Somos vasos comunicantes. Qualquer melhora num determinado espaço perde consistência orgânica no espaço seguinte.  

A bem da verdade, neste século, somente nos últimos anos, São Bernardo é o único endereço que reagiu à insolvência logística. O prefeito Orlando Morando está para obras estruturantes no ABC Paulista assim como Celso Daniel para institucionalidade. 

Mas o ABC Paulista segue como um cardíaco industrial, sofre de artrose de cidadania, tem o fígado do senso crítico cansado de tanta cachaça triunfalista, reclama de enxaqueca psicológica e mantém obesidade de frouxidão ética exasperante.  

Tudo isso em competitividade logística,  em termos econômicos e também em qualidade de vida interna, de quase três milhões de moradores. 

A reforma do Plano Diretor que se anuncia quase que envergonhadamente em Santo André, portanto, está nesse contexto regional e municipal.  

GRAVIDADE DE ENFERMO 

Nada parece indicar que a gravidade do enfermo urbanístico será reduzida. Mais que isso: exames expostos e obscuridade que cerca a terapia, tudo indica que a situação vai se agravar. Portanto, deveremos passar por novos e tenebrosos horizontes.  

Não existe, até prova em contrário, preocupação alguma do prefeito Paulinho Serra em iniciar trajetória de contenção dos estragos que veem do passado.  

A escalação do time que cuidará do assunto lembra o resultado de um julgamento sob a responsabilidade de indicados a dedo para dar legalidade a manipulações.  

É nesse ponto que chego aonde queria, ou seja, à companhia que gostaria de ter no helicóptero daqueles três voos num mesmo dia para saber o que se passa lá embaixo, mais do que já sabemos por estar aqui embaixo nesse caos viário e diário que detecta improdutividades numa escala visual limitada. 

GRANDE EXPERIENCIA 

Dividir um lugar no helicóptero com o urbanista Sérgio Magalhães seria uma experiência e tanto, provavelmente como viveu Celso Daniel naquele dia em que passeou lá no alto com um dos urbanistas internacionais do Projeto Eixo Tamanduatehy. 

A primeira vez que ouvi falar de Sérgio Magalhães, sobre o qual escrevi uma análise em 2012, tocou num dos pontos mais sensíveis do mercado imobiliário, ou seja,  o conceito de densidade urbana, ou densidade demográfica,  que é diferente de verticalização tão explorada por mercadores imobiliários insensatos.  

Sérgio Magalhães explicou a diferença entre uma coisa e outra. Provavelmente integra os quadros de profissionais odiados pelo Clube dos Construtores da Família Bigucci.  

Uma entidade responsável socialmente deveria tornar especialistas como Sérgio Magalhães peça-chave de consultoria e conferências públicas e privadas para disseminar conhecimentos urbanísticos que aliviariam o estágio de degradação das cidades.  

MAIS QUE MERCADO 

Pois esse urbanista que presidiu o Instituto de Arquitetos do Brasil entre 2012 e 2017, escreveu recentemente mais um livro sobre a saúde urbana nas grandes metrópoles. Publicado pela Editora Rio Brooks, a obra “Reinvenção da Cidade – Interação, Equidade, Planeta” ressalta os principais desafios dos espaços urbanos contemporâneos, sugere caminhos para enfrenta-los e defende o coprotagonismo das cidades no desenvolvimento do País. 

Perguntado pela Revista Projeto sobre o futuro do País nesse campo, Sérgio Magalhães foi enfático. Antes, vamos à pergunta: 

REVISTA PROJETO – São elencados três pontos-chave para que se alcance a melhoria urbana – interação, equidade e sustentabilidade. Então, pode-se dizer que é uma reestruturação (ou como se afirma, uma reinvenção) de modo de vida, de consciência: portanto, essa nova substância injetada no extrato social, em massa, seria um pivô a ser refletido na própria cidade (como um espelho), para enfim alcançar a tal reinvenção urbana. Gostaria que comentasse essa engrenagem. 

SÉRGIO MAGALHÃES – Esse é o grande desafio. O que fiz é uma contribuição para que a cidade brasileira possa corresponder aos nossos tempos com mais igualdade, atenção ao planeta, preservando sua condição existencial como local para interação, e que possa constituir, tão logo, uma pauta política, para que seja tratada convenientemente – coisa que não tem sido. Pelas condições de hoje, em que 85% da população brasileira mora em cidades (são mais de 170 milhões de moradores urbanos), nas cidades há desigualdade gritante em infraestruturas, serviços públicos, equipamentos, moradia, onde tudo se reflete tão fortemente na redução da potencialidade do país (e das pessoas). Então, inserir a questão urbana na pauta política brasileira, a mim me parece ser essencial. O livro tem essa enorme pretensão: ajudar a alertar para a necessidade de construí-la. O livro também tem a humildade de considerar o que ele está apresentando é algo pequeno, em face desse grande desafio, pois, além das três principais partes do livro, conforme citado, gostaria de destacar que, na minha compreensão, o Brasil que está patinando há décadas, e cujo desenvolvimento é muito menor que o necessário para inseri-lo no contexto contemporâneo mais justo e com suas dimensões continentais, vai continuar patinando, se não der atenção grande ao seu sistema de cidades. No livro, chamo a atenção para o fato de que, há décadas, estamos subjugados pela hegemonia financeira, e para muitos que veem a desigualdade de renda crescer, é dado como condição para o desenvolvimento de cidades o crescimento da economia -- o que a pandemia, ou a crise financeira de mercados de 2008 demonstrou que não é verdade. Então é interdependente a saúde, a economia, a política, a cultura, a cidade, o planeta. Todos eles se intercomunicam e é desta comunicação que se pode chegar a uma solução adequada aos nossos tempos – afirmou o urbanista.  

VOLTANDO A 2012 

Não custa reproduzir o trecho da análise que fiz em 2012, mencionada acima:  

 A primeira lição que Sérgio Magalhães disseminaria na Associação dos Construtores, especialmente a Milton Bigucci, é explicar detalhadamente, profundamente, culturalmente, a diferença entre densidade urbana e verticalização urbana. Pode parecer algo simples demais, quase mobralino, mas Milton Bigucci precisa ouvi-lo para não voltar a escrever artigos, como já escreveu aos magotes, sobre a imperiosidade de construir arranha-céus para dar vazão à demanda por novas residências.  Sim, Milton Bigucci chegou ao cúmulo de proclamar a quadruplicação do potencial de construção do solo urbano. Edifícios de 20 pavimentos são uma merreca perto do que pretende o presidente da Associação dos Construtores. Ele quer torres de até 80 andares. Já imaginaram o tamanho da encrenca urbana se já com os limites estabelecidos e o festival de compra e uso de veículos o trânsito se tornou um inferno? Milton Bigucci aprenderia com o possível contratado o que os leitores de Época aprenderam ante a seguinte pergunta do jornalista escalado para ouvi-lo:  Pergunta -- A alta densidade costuma ser associada à má qualidade de vida, poluição, engarrafamentos e outros problemas urbanos. Por que o senhor a defende como algo bom para a cidade? Resposta -- Densidade não quer dizer edifício alto, espigão. Quer dizer mais gente num território onde os serviços públicos são viáveis. Paris é uma cidade muita densa, mas não tem prédios altos. No Rio, os quarteirões entre Ipanema e Lagoa, com prédios de cinco andares, têm alta densidade, mas alta qualidade de vida. Precisamos de cidades compactas. Assim você cria espaços de convívio com serviços de mais qualidade. Serviço público custa muito. Com as pessoas espalhadas, é mais difícil atendê-las. Na prática, só se atende quem tem mais poder, as áreas mais ricas. Tome o exemplo da Barra da Tijuca, no Rio, que tem baixíssima densidade.   

SELEÇÃO DE ESPECIALISTAS 

Para completar, tenho dúvida sobre quem acompanhava Celso Daniel naquele voo de helicóptero. Tentei resolver a questão com pesquisa na Internet e não consegui. Mas vou apostar na identidade do francês Crhistian de Portzamparc, com margem de 10% de erro.  

O Eixo Tamanduatehy era algo tão avançado que morreu de morte natural depois da morte de Celso Daniel. Veja a equipe com que ele contava no comando da ações:  Cândido Malta (Brasil), Crhistian de Portzamparc (França), Eduardo Leira (Espanha) e Joan Busquets (Espanha), com a consultoria dos urbanistas Jordi Borja, da Espanha, e Raquel Rolnik, do Brasil. Sem contar os coordenadores técnicos da Prefeitura de Santo André, Maurício Faria e Horacio Galvanese.  

Viram?  Repararam? Refletiram? Pergunte ao prefeito Paulinho Serra quem está cuidando do Plano Diretor de Santo André, que é algo muito mais amplo. Certo é que a assessoria do Clube dos Construtores da Família Bigucci foi anunciada pelo próprio presidente da entidade, Milton Bigucci Júnior.  E depois perguntam por que o Grande ABC virou ABC Paulista. 



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