Meias Verdades

Crônica anunciada
do setor automobilístico

DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  Em 8 de abril de 1998 o Diário do Grande ABC publicou matéria sob o título “Setor automotivo é prioridade para ministro”. Os principais trechos:

O novo ministro do Trabalho, o economista carioca Edward Amadeo, foi empossado ontem pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e, em entrevista coletiva, convocou toda a sociedade a firmar um “pacto pelo emprego”. As primeiras medidas serão direcionadas ao setor automobilístico, basicamente concentrado no Grande ABC: juntos, governo, empresários e trabalhadores criarão um plano estratégico de desenvolvimento para o setor, que incluirá a flexibilização da legislação trabalhista — com o fim da unicidade sindical e do poder normativo da Justiça do Trabalho — e liberação de financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).


O setor automobilístico será o primeiro porque é o maior e mais importante e envolve as mais expressivas representações de trabalhadores. Por isso, ele será o nosso laboratório”, disse o ministro.


O secretário especial do Ministério, Jorge Jatobá, mantido no cargo pelo novo ministro, disse já estarem prontas propostas de emendas constitucionais modificando os artigos 8º e 114º da Constituição Federal. A mudança no 8º pretende acabar com a unicidade sindical por base territorial, como Estados ou municípios. A alteração vai permitir que em um mesmo Município, por exemplo, sindicatos negociem separadamente os pleitos de seus filiados. Dessa forma, haverá uma competitividade entre entidades sindicais, podendo o trabalhador se transferir para um sindicato mais eficiente.



  •  Menos de quatro meses depois, o mesmo Diário do Grande ABC publicou a matéria “GT automotivo quer definição do Estado”. Os principais trechos:

O Grupo de Trabalho sobre o setor automotivo da Câmara Regional do ABC vai cobrar do governo do Estado um posicionamento claro sobre sua participação nas discussões que vêm sendo levadas pelo grupo, que reúne montadoras, setor de autopeças, sindicato de metalúrgicos, prefeituras e secretarias estaduais. “Os pontos que estão em discussão passam por definições do Estado, que até agora não se manifestou sobre a possibilidade ou não de se chegar a um acordo”, disse o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo, Fernando Longo.


Segundo o secretário, o prefeito da cidade e coordenador da Câmara Regional, Maurício Soares, pretende se reunir com o secretário estadual de Governo, Antônio Angarita, para expor o problema. “Caso o Estado não se manifeste, ficará difícil cumprir a agenda do grupo”, avaliou Longo.


O grupo de trabalho, que se reúne desde maio para discutir o aumento da competitividade da cadeia automotiva na região, fixou para o dia 30 de setembro o estabelecimento de acordo para reduzir o custo de produção e, consequentemente, o aumento de vendas de veículos e o crescimento do número de empregos no setor.


De acordo com Longo, propostas como flexibilização de impostos, investimentos no sistema viário e na infra-estrutura, formação e qualificação profissional, aperfeiçoamento da rede de saúde, escolas e transportes públicos precisam da presença do Estado para se chegar a um acordo. “O governo estadual não tem enviado representantes constantemente para acompanhar as discussões”, disse.


Segundo o diretor de Recursos Humanos da Mercedes-Benz de São Bernardo, Luiz Adelar Scheuer, o objetivo do grupo é reduzir o chamado “Custo ABC” para o setor. “Estamos trabalhando firme nesse propósito, fazendo um diagnóstico para chegarmos a propostas concretas para diminuir esse custo”, disse. A intenção do grupo é que a proposta a ser concluída em 30 de setembro seja um acordo da Câmara Regional a ser assinado na última reunião do Conselho Deliberativo, este ano, prevista para 30 de novembro.



  •  Três dias depois da publicação no Diário do Grande ABC, em 31 de agosto de 1998 o jornal O Estado de S. Paulo veiculava sob o título “Investimento no País é exagero, diz consultor” matéria com os seguintes trechos selecionados:

O Brasil entrará no século 21 com capacidade de produzir em torno de 30% mais veículos que o mercado poderá absorver, segundo Manfred Tuerks, presidente do Setor Automotivo Global da ATKerney, consultoria norte-americana com filial no Brasil. Para ele, há excesso de investimentos no setor no Brasil e Mercosul e o ritmo do surgimento de novos consumidores foi superestimado.


O consultor norte-americano, em visita ao Brasil, explicou por quê acredita que haverá sobra de carros na região a partir de 2000 — pelo menos, mais linhas de montagem que o mercado vai precisar. O mais importante é que o processo de diminuição do número de habitantes por veículos — que hoje é de nove no Brasil — é bastante gradual.


“Haverá no máximo, nessa relação, a redução de uma pessoa por ano”, destacou Tuerks. Assim, pelos cálculos da ATKerney, o Brasil precisa de pelo menos sete anos para igualar-se aos padrões europeus, onde a média é de 2,5 habitantes por veículo. A projeção leva em conta a manutenção da estabilidade econômica e previsão do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto).


Os altos níveis de custos levam a crer, segundo ele, que as vendas para o exterior não ajudarão a preencher o vácuo da capacidade produtiva a ser instalada em dois ou três anos.


Segundo o especialista, os estudos indicam que, para cada um ponto percentual de crescimento no PIB, o mercado de veículos aumenta 7%. Se esse ritmo se confirmasse, o País levaria seis anos para atingir consumo coerente com a capacidade produtiva do parque a ser instalado em breve. Pode levar menos, se os programas de exportações forem bem-sucedidos.


O ritmo de exportações do Brasil avançou graças aos estímulos do regime automotivo, mas Tuerks vê poucas perspectivas de avanços mais significativos em razão da competição mundial. Ele lembra que a capacidade mundial já está de 20% a 30% acima da demanda.


O torpedeamento da economia do Grande ABC dependente em demasia da indústria automotiva é uma crônica anunciada que pode ser sintetizada nas três notícias cronologicamente tão próximas quanto tardias. A omissão do governo federal se rivaliza em nocividade com o descaso do governo estadual e com o desleixo dos governos municipais locais como provas irrebatíveis do rebaixamento da economia regional.


Não foi levada a sério nem mesmo a propagação, por fontes especializadas, de que o cenário de competitividade internacional espremeria o Grande ABC contra a parede e que, portanto, recomendava ações de força-tarefa para reduzir o grau do estrondo provocado pela abertura econômica. Diferentemente, portanto, de hecatombes que atingem municípios, regiões e países surpreendidos por travessuras da natureza, como enchentes, vendavais, terremotos e mesmo distúrbios políticos e étnicos, a gênese da debacle do Grande ABC é genuinamente marcada por despropósitos gerenciais.


Quando o então ministro do Trabalho Edward Amadeo fez o pronunciamento em Brasília, em abril de 1998, o quadro socioeconômico no Grande ABC já era extraordinariamente periclitante. A abertura econômica no governo Fernando Collor de Mello, em 1990, iniciou jornada de sangria regional que na sequência Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso consolidaram.


As mudanças anunciadas por Edward Amadeo na estrutura sindical do País e os divulgados financiamentos do BNDES não passaram de simples promessas. A reforma trabalhista está na pauta do governo Lula da Silva e o BNDES, agora sob nova direção, parece decidido a prestigiar pequenas e médias empresas em proporção compatível com a importância socioeconômica de quem representa 97% das unidades produtivas do País. O problema é que a cadeia automotiva do Grande ABC foi quase que totalmente sucateada ou desnacionalizada, como de resto no País entregue na bacia das almas. Dados do Sindipeças indicam que o capital estrangeiro domina 77% de um segmento que foi predominantemente nacional até os anos 90.


A desfaçatez com que especialmente o governo FHC tratou a economia do Grande ABC, bem como outras regiões do País, não teria o tecido de recuperação minimamente recomposto nem se as propostas do então ministro do Trabalho fossem convertidas em realidade. Em verdade, aquelas medidas seriam apenas cosméticas diante do quadro macroeconômico que colocou pequenas e médias indústrias metalúrgicas da região no olho do furacão da abertura escancarada das alfândegas. O peso relativo de influência da cadeia automotiva na economia beira a 70% do PIB regional. Portanto, não é difícil entender a ressonância social das bombas de Hiroshima e Nagasaki da abertura econômica que explodiram na região.


Como poderiam resistir aos então novos conceitos de competitividade internacional pequenas e médias empresas que ao longo de décadas viveram à sombra do protecionismo de um mercado fechado, de substituição de importações? O que Collor, Itamar e principalmente FHC fizeram foi uma sequência de lances de imprudência administrativa. Atirou-se à fogueira da competição internacional gestões familiares de um setor dominado por protagonistas multinacionais. Um estudo do professor de Economia e então pesquisador do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) Marco Aurélio Bedê, publicado em 1996, dá idéia mais precisa e científica do arraso da política automotiva no Brasil.


As montadoras de veículos tiveram ampla proteção do Estado, enquanto os fornecedores, então a maioria de capital nacional, foram preteridos contundentemente. A estratégia era clara: permitir que as montadoras se atualizassem tecnologicamente, em processos e em recursos humanos. Uma proteção pela metade, porque jogou as pequenas autopeças às feras da internacionalização.


Enquanto as montadoras registravam até o final de 1995 blindagem de 148%, as autopeças ficaram desprotegidas em 15%. Os cálculos do pesquisador abrangiam desde alíquotas do Imposto de Importação de veículos e peças até margens brutas de cada setor, incluindo as diferenças em custos, despesas e outros valores adicionados.


Um exemplo do próprio economista, relatado naquela reportagem à jornalista Marli Olmos, simplifica o entendimento da diferença. Um carro importado que custa 100 é vendido para o consumidor brasileiro por 170 (70% de Imposto de Importação). Já uma peça importada que também vale 100 custa à montadora 104,8 (4,8 de alíquota). A diferença de proteção entre os dois segmentos é o espaço que a montadora tem para aumentar preços, sustentou Bedê. “O resultado é a transferência de renda dos fornecedores e do consumidor para o fabricante de carros”.


Em suma: a política governamental para o setor automotivo durante larga etapa dos anos 90 levou as montadoras a incorporar menos componentes nacionais a bordo da redução das tarifas de importação. E tornou mais vulnerável o setor local de autopeças, que teve o poder de barganha sensivelmente reduzido frente às montadoras. Como bater o pé por preços mais justos se a guilhotina das importações estava armada num período em que o real sobrevalorizado em relação ao dólar tornava a desigualdade de tratamento fiscal ainda mais cruel?


Em entrevista ao Estadão sobre o assunto, em dezembro de 1996, portanto 18 meses antes de Edward Amadeo tomar posse, Marco Aurélio Bedê cantava a caçapa da destruição do parque nacional de autopeças nos anos seguintes: “A indústria de autopeças é formada predominantemente por pequenas e médias empresas de capital nacional e controle familiar, com baixa capacitação tecnológica e forte dependência do mercado interno, aliado ao recente processo de abertura do mercado. Isso acarretará na redução da rentabilidade, nível de emprego e eliminação ou absorção de empresas já instaladas” — diagnosticou o estudo.


Entre a divulgação do estudo de Bedê em 1996 e a realidade do início de janeiro de 2003 há fina sintonia de grandes transformações no setor automotivo. O número de montadoras explodiu nos últimos anos, mas a indústria automotiva brasileira diminuiu o total de trabalhadores. Em 1987, pico do emprego nas montadoras, o Brasil chegou a contar com 141,4 mil trabalhadores, contra 91,8 mil em dezembro de 2002. Entre 1996 e 2002, o Brasil construiu 22 novas fábricas de veículos e de motores sem que se possa afirmar que o governo federal tenha pelo menos rascunhado um plano estratégico que evitasse o canibalismo antecipado por especialistas. Preferiu, isso sim, liberar recursos generosos do BNDES às montadoras, com juros subsidiados.


Ninguém disponibiliza mais informações estratégicas de determinado setor que os próprios agentes ativos, sindicatos e empresas. Por isso, quando se anunciou o Grupo de Trabalho para desenrolar o novelo do setor automotivo do Grande ABC em maio de 1998, jamais se poderia imaginar que se deixasse de imprimir velocidade às decisões. O turbilhão da globalização já fazia estragos. Os sinais de arrefecimento da economia regional em forma de redução da produção de riqueza industrial e de quebra do contingente de trabalhadores industriais com carteira assinada já davam nítidos contornos de uma bola de neve gigantesca.


Nem assim o Grande ABC foi capaz de sair das amarras corporativas. Bastou um documento que condensou as realidades corporativas de montadoras, autopeças e metalúrgicos para que se configurasse paralisia coletiva. Mexer com o Custo ABC no setor automotivo é uma heresia para os metalúrgicos, uma emergência para as montadoras e tábua de salvação para as autopeças. Sem consenso para a derrubada de salários e de benefícios indiretos — entre os quais áreas de responsabilidade do Estado como saúde, educação, transporte e previdência — o Grupo de Trabalho jamais voltou a se encontrar.


O governo do Estado também lavou as mãos sobre as dores do parto da abertura econômica que solapou a saúde do Grande ABC. Manteve posição catatônica — como se não tivesse nada a ver com os intensos efeitos colaterais da desativação e evasão de indústrias, além do corte profundo do contingente de trabalhadores. Até agora, já em 2003, as instituições econômicas e políticas que perversamente representam o Grande ABC não foram capazes de articular intervenções que mudem o enredo ao qual a região foi submetida. A indústria automotiva é a galinha dos ovos de ouro do Grande ABC, mas está sendo gradualmente morta a marteladas de egoísmos exacerbados e corporativismo irrefreável. Atingida em cheio também pela liberalidade com que a União incentiva a guerra fiscal entre Estados, as montadoras e autopeças da região carregam nas entranhas um modelo de relacionamento capital-trabalho que torna os custos de produção muito mais elevados do que a vantagem comparativa de estarem no epicentro do mercado consumidor do País.


Um mercado que, conforme previu o especialista da ATKerney entrevistado pelo Estadão em agosto de 1998, não consegue consumir mais que 1,8 milhão de veículos de passeio e comerciais leves em 12 meses, contra capacidade instalada de 3,2 milhões. Com tanta ociosidade, as montadoras que se instalaram no Brasil, e as que gozavam do mercado fechado, fazem das tripas coração para abrandar o vermelho dos balanços.


Leia mais matérias desta seção: Meias Verdades

Total de 27 matérias | Página 1

01/04/2003 Quando a guerra fiscal está à sombra de tudo
01/04/2003 Produção industrial sobe apenas nas estatísticas
01/04/2003 Emerson Kapaz projeta lucros para quem investir
01/04/2003 São Paulo vira paraíso de triunfalismo virtual
01/04/2003 ABCizar, gosto duvidoso de obra nunca realizada
01/04/2003 Uma promessa que FHC jamais cumpriu
01/04/2003 Crescimento do PIB é festival de equívocos
01/04/2003 Metropolização petista desaparece com eleição
01/04/2003 Quando mais empresas significam mais problemas
01/04/2003 Crônica anunciada do setor automobilístico
01/04/2003 TV por assinatura só explode nas estatísticas
01/04/2003 Versões e buracos em excesso no comércio
01/04/2003 Quando o liberalismo lambe o assistencialismo
01/04/2003 Emprego ao sabor de alquimias metodológicas
01/04/2003 Câmara Regional não passa de grande blefe
01/04/2003 Quando a interpretação fica no banco de reservas
01/04/2003 Fórum da Cidadania, da nobreza ao patético
01/04/2003 Até Bill Clinton surge para salvar a região
01/04/2003 Quando ingenuidade e chutometria dão as mãos