Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Plantamos regionalidade,
mas não sabemos colher

CARLOS AUGUSTO CÉSAR CAFU - 16/09/2008


A história da articulação regional no Grande ABC teve início na década de 1990 em meio ao debate sobre nossa necessidade de recuperação econômica. Vivíamos conjuntura difícil devido ao aumento do desemprego, à redução de salários e diminuição do poder de compra. Uma das principais regiões industriais do País sofria as consequências da globalização e da reestruturação produtiva. Por isso, não podia se calar diante de tantas transformações. As principais lideranças passaram a questionar a capacidade de o Grande ABC superar a evasão industrial e a diminuição dos outrora fartos empregos, e um grande debate mobilizou os atores sociais — representantes tanto dos poderes públicos quanto da sociedade civil.


Num primeiro momento, acreditamos que era preciso uma ação com forte investimento em políticas sociais e de desenvolvimento regional, a partir do incentivo à participação popular. Políticas de geração de emprego e renda, e de fomento ao microempreendedorismo, por exemplo, eram sugeridas como um dos caminhos alternativos. Um importante aspecto dessa experiência foram as ações conjuntas entre Poder Público e representações da comunidade, uma experiência única de atuação regional marcada pela aproximação entre governantes e governados.


A região viveu período rico, com debates intensos em torno da recuperação econômico-social. A criação do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos em 1990, mais tarde a constituição da Câmara do Grande ABC (1997) e da Agência de Desenvolvimento Econômico (1998) significariam grande passo no sentido de buscar a institucionalidade necessária para consolidar e fortalecer uma política regional em torno de nossas prioridades.


Após quase 15 anos, observamos que a formação dessas instâncias foi fundamental ao desenvolvimento de determinadas ações com objetivo de solucionar sérios problemas do Grande ABC. Não há dúvida de que a experiência foi bem-sucedida e tem sido constantemente destacada em vários fóruns do País. A política integrada entre os sete municípios permitiu implantar importantes projetos de característica regional.


Para citar alguns exemplos de acordos regionais bem-sucedidos com o governo do Estado de São Paulo, tivemos a construção do Hospital Regional Mário Covas em Santo André e do Hospital Regional Serraria em Diadema, construção de piscinões e o trecho sul do Rodoanel em andamento. Isso sem falar das articulações consorciadas entre os sete municípios para dar solução à destinação do lixo e também programas sociais na área de saúde, de combate à violência contra a mulher e tantos outros.


Na área social, também presenciamos a concretização de acordos que permitiram ações como o Mova (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), o Movimento Criança Prioridade 1 e o Projeto Alquimia de Qualificação Profissional para a indústria do plástico.


A criação da Agência de Desenvolvimento Econômico também foi fundamental para ações em torno da economia regional, sobretudo de fortalecimento dos complexos petroquímico-plástico, metal-mecânico, de móveis, cosméticos e serviços por meio de programas de fomento às micro e pequenas empresas. Sem falar dos APLs (Arranjos Produtivos Locais) de autopeças, metal-mecânico e plástico, e a constituição de uma base regional de dados socioeconômicos.


Observamos a partir de 2001, com as
mortes de Mário Covas e Celso Daniel,
um enfraquecimento das ações regionais


Vale lembrar que o envolvimento e a capacidade de determinadas lideranças foram fundamentais para o entrelaçamento dos sete prefeitos e dos diversos representantes da sociedade civil num novo projeto de recuperação do desenvolvimento regional — sobretudo a participação do então prefeito de Santo André Celso Daniel, que exerceu importante papel ao promover a união das forças políticas necessárias para impedir a desaceleração da economia regional. Desse modo, foi possível elaborar um projeto político em torno de propostas e objetivos comuns, de superação das divergências político-partidárias entre Poder Público e privado e em favor de um projeto regional ainda maior.


A partir de 2001, entretanto, observamos uma tendência de refluxo e enfraquecimento da ação regional, principalmente em razão da morte do governador do Estado de São Paulo Mário Covas, que até então havia desempenhado relevante papel na concretização de importantes acordos regionais, e também a partir da trágica morte do prefeito Celso Daniel em 2002. Apesar de sofrermos tal impacto, no final de 2004 — quando, aliás, encerramos a gestão do Consórcio de Prefeitos com participação de cinco prefeituras do PT — estávamos vivendo fase com diversas atividades graças à nova política de tratamento do governo federal com organismos de articulação regional e particularmente com o Grande ABC.


O governo federal passou a atender as demandas da região, reconhecendo a capacidade de nossas instituições desenvolverem projetos de interesse local. Tanto é verdade que, das reivindicações entregues pelos prefeitos ao presidente da República em 2003, por meio da Carta do Grande ABC, tivemos liberação de recursos para construção do coletor-tronco para afastamento dos efluentes hídricos das áreas de mananciais da Bacia Billings, acordo entre PQU (Petroquímica União) e Petrobrás para fornecimento de matéria-prima visando a ampliação produtiva do Pólo Petroquímico de Capuava, implantação de posto avançado do BNDES na Agência de Desenvolvimento Econômico a fim de facilitar o acesso ao crédito para micro e pequenas empresas, criação da Universidade Federal do Grande ABC e ainda o empenho do governo pela aprovação da lei 11.107, que regulamenta os consórcios públicos, de 29 de março de 2005.


Portanto, iniciamos uma atuação por projetos concretos, o que reforçou a necessidade de fortalecer a estrutura e a capacidade do Consórcio Intermunicipal, conforme já apontávamos em 2001. Avaliações do próprio Celso Daniel indicavam que o Consórcio deveria ultrapassar barreiras e se tornar órgão de execução de ações, não apenas de planejamento.


A introdução que fiz neste ensaio tenta mostrar que o Consórcio de Prefeitos do Grande ABC se preparava para nova fase, contando nesse momento com apoio e parceria de um governo federal que até então ficara muito ausente das necessidades da região. No entanto, com os resultados pouco favoráveis para a política regional das eleições municipais de 2004, e, posteriormente, após dois anos do Consórcio sob a presidência do prefeito William Dib de São Bernardo seguido do prefeito Kiko Teixeira de Rio Grande da Serra, temos hoje um quadro completamente diferente. Cerca de 80% das ações foram paralisadas e os convênios com o governo federal foram suspensos ou não renovados, como o Planteq ABC, de qualificação profissional.


É sabido que em 2004 o Consórcio Intermunicipal contratou a FGV (Fundação Getulio Vargas) para elaborar a adequação da estrutura administrativa da instituição tendo em vista a nova lei 11.107/2005 de Regulamentação dos Consórcios Públicos. O material foi entregue em dezembro do mesmo ano, mas engavetado pela nova gestão. Todas as avaliações indicam que o Consórcio Intermunicipal só terá a ganhar com sua transformação em consórcio público. Poderá ampliar a atuação, estabelecer parcerias com o governo federal para programas de interesse social da região, fortalecer a capacidade de cooperação e captação de recursos das esferas públicas e até de instituições internacionais.


A Câmara Regional e o Planejamento Regional Estratégico, elaborado em 2000 com previsão de ações até 2010, foram totalmente desprezados. Houve apenas uma reunião da coordenação executiva da Câmara do Grande ABC em 2005, ou seja, não há mais qualquer forma de relação com a sociedade civil. Apenas neste 2008, após eleito presidente do Consórcio, o prefeito João Avamileno, de Santo André, demonstra intenção de reabrir o diálogo e a parceria com a sociedade.


A política regional faz pouco, mesmo
com cenário mais favorável da economia.
Consórcio desmobilizou vários grupos temáticos


No caso da atuação do Consórcio Intermunicipal, as ações propagadas pela gestão do prefeito William Dib também não vingaram, principalmente as relacionadas à implantação do Rodoanel, questões tributárias, guerra fiscal etc. Quanto às relações com o governo do Estado, apesar dos discursos, quase nada foi concretizado. Os resultados foram bem aquém do esperado. O Consórcio de Prefeitos perdeu dinamismo, muitos grupos temáticos foram desmobilizados.


A eleição do presidente Lula da Silva permitiu vislumbrar uma perspectiva de mais trabalho por meio do Consórcio, porém a política regional produz muito pouco mesmo diante do cenário mais favorável da conjuntura econômica, de apoio institucional e de investimentos do governo federal na região. Uma das principais causas dessa limitação está na falta de lideranças locais com capacidade para mobilizar e articular atores políticos, de modo a fazer com que o planejamento regional seja colocado na ordem do dia e nossas prioridades atendidas.


Infelizmente, como esperado, depois da perda da liderança de Celso Daniel, a política regional nunca mais foi a mesma. Mesmo os atores e lideranças que despontam atualmente não compreendem que o Grande ABC é maior do que muitos outros pequenos interesses. Independentemente das divergências partidárias, que, aliás, antes não comprometiam o andamento das ações regionais, estamos perdendo a oportunidade de avançar e desenvolver importantes projetos.


De um lado, há governo federal que dialoga e tem interesse em investir na região, mas não somos capazes de fazer valer nossas propostas. Poucos projetos têm caminhado, e em ritmo muito lento. Por outro lado, não conseguimos mais trazer o governo do Estado para o diálogo com a região e como parceiro em novas ações. Nesse caso também, apesar da proximidade de alguns prefeitos do Grande ABC com o governador, não temos o diálogo e a parceria que estabelecemos com a liderança de Mário Covas. Em 1999, tínhamos apenas três prefeitos da mesma força política e ainda conseguimos elaborar o Planejamento Regional Estratégico com a importante participação dos prefeitos Maria Inês Soares, Celso Daniel, Maurício Soares, Gilson Menezes, Oswaldo Dias e Luiz Tortorello.


Por outro lado, observamos certa desmobilização da sociedade civil. Os sindicatos de trabalhadores pouco têm atentado para questões de ordem regional. Se durante os anos 1980-90 foram atuantes, hoje se comportam de forma bem mais corporativa, voltados apenas para interesses próprios da categoria profissional. A participação da maioria das lideranças sindicais se dá de maneira individual, em atuação muitas vezes restrita às disputas eleitorais. Na área empresarial, com exceção sobretudo das empresas do pólo petroquímico, não conseguimos sensibilizar e envolver importantes setores econômicos industriais nas ações de desenvolvimento regional.


O Fórum da Cidadania, que tanto representou as aspirações dos movimentos e organizações não-governamentais, tem inexpressiva atuação. Podemos identificar com clareza quem realmente são os representantes da sociedade civil? Temos tido percepção para reconhecer novos movimentos e representações que surgem no cenário regional?


Além disso, noutros momentos também tivemos uma bancada de deputados estaduais e federais bem mais articulados com temas regionais. Nesse caso, o Consórcio de Prefeitos tem grande papel. Poderia organizar e dispor de espaço para encontros regulares da bancada, definindo uma pauta de assuntos para que nossos parlamentares possam contribuir com o fortalecimento das demandas apresentadas aos governos do Estado e federal.


A fragilidade de organização desses segmentos e a falta de comunicação entre si, como sindicatos de trabalhadores, empresários, parlamentares, movimentos e organizações não-governamentais, levaram ao enfraquecimento da própria Câmara do Grande ABC. Os atores não mais se comunicam, não falam a mesma língua quando se trata de defender interesses mais amplos da região. Como exemplo, uns consideram que o mais importante é investir no pólo petroquímico, outros vêem o turismo como prioridade, mas não há ação estratégica e conjunta. Nessa situação quem perde é a região.


Vivemos hoje situação econômica muito mais favorável. Antes era bem pior e ainda não havia o governo federal a nosso favor. Hoje, ao contrário, temos a produção do pólo petroquímico se ampliando, as montadoras contratando, temos uma universidade federal recém-implantada, de modo que em breve teremos fortes investimentos em ciência, tecnologia e capacitação de profissionais para o mercado de trabalho, o que ampliará ainda mais a capacidade produtiva da região. Nesse contexto, é necessário também discutir e atualizar o debate sobre a sustentabilidade ambiental da região.


Em resumo, estamos vivendo um novo momento. É preciso aproveitar o bom diálogo com o governo federal e envolver o governo do Estado, pois, se há interesse em bom resultado nas eleições de 2010, este deve considerar a importância de nossa região. Temos condições de definir uma pauta de prioridades, atualizar o planejamento regional estratégico, retomar os convênios com o governo federal, participar do debate nacional sobre a importância dos consórcios públicos. Podemos retomar o diálogo com a sociedade civil, as reuniões da Câmara Regional, estabelecer novas parcerias e cobrar do governo do Estado o cumprimento de ações e acordos regionais, além de impulsionar os trabalhos da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC para atrair maior participação de empresários que têm interesse em investir na região.


Contudo, perdeu-se o espaço da articulação entre os atores políticos, prefeitos, deputados, empresários e sociedade para se pensar e agir em favor do futuro do Grande ABC. Resta saber, após o resultado das eleições municipais deste 2008, se surgirão novas lideranças regionais entre os prefeitos eleitos. Ou seja, gestores públicos com visão mais ampla, que atuem em favor dos grandes interesses regionais mas que dêem ao mesmo tempo tratamento diferenciado às demandas específicas de municípios menores. Isto é, que consigam aliar o interesse de todos, colocando novamente, e de fato, a pauta regional na ordem das prioridades.


Não podemos, no entanto, apenas esperar que o Poder Público se manifeste. Para que possamos ter governos conectados com as demandas da região e atentos às expectativas da população, precisamos incentivar e reunir todos os setores representativos da sociedade civil. Ter interesse, vontade e sensibilidade para mapear e identificar os expressivos segmentos sociais. Recuperar o fórum de debates com aqueles que realmente têm compromisso com o futuro do Grande ABC.


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