Se é com amargura e ansiedade que o leigo olha para a área da saúde, em especial a saúde pública, como os profissionais especializados vêem essa realidade? Num passado não muito distante, o Grande ABC vivenciou a construção de muitos hospitais com verbas do antigo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), a habilitação crescente de leitos destinados ao serviço público, mas presenciou também um gradativo e irreversível descredenciamento desses leitos, refletindo na redução da oferta de serviços públicos.
Com o passar do tempo e com as crises vividas nas esferas municipal, estadual e federal tornando piores as condições socioeconômicas da população, somado ao citado descredenciamento de leitos e serviços, a região viu crescer a deficitária oferta de leitos públicos. O pouco ou nenhum investimento em políticas públicas e o excesso de leitos privados oferecidos à população empobrecida pela desaceleração econômica que assolou a região tornaram-se sinônimo de estrangulamento da rede pública.
A capacidade para manter procedimentos de alta complexidade e seu alto custo, devido à carência de retaguarda hospitalar e ao próprio custeio de manutenção, agravou-se e tornou cada vez mais difíceis os atendimentos e as propostas de tratamento. Aliada negativamente a essa situação pode ser observada a realidade de cada Município do Grande ABC. As sete cidades mantêm estruturas completamente diferentes e desenvolvem modelos específicos voltados ao perfil da respectiva população.
Com mais ou menos recursos para possibilitar uma administração coerente, os municípios ainda sofrem adversidades com situações díspares entre si, comparados uns aos outros, e dentro da própria territorialidade, onde é evidente a diferença entre bairros mais próximos dos grandes centros dotados de infra-estrutura e melhor qualidade de vida e os núcleos mais afastados, que permeiam o caos e o desequilíbrio. Notamos aí verdadeiras “Belíndias”, com regiões vivendo como pequenas Bélgicas e outras vencidas como verdadeiras Índias.
Na tentativa de minimizar a situação, os municípios readequaram serviços e buscaram implementação de verbas para sua manutenção. Com a implantação do SUS (Sistema Único de Saúde) pela Constituição de 1988 e a publicação de normas operacionais que delineavam diretrizes de assistência à saúde, gradativamente as cidades foram habilitadas às gestões específicas que regulamentavam ações e repasses financeiros.
E a saúde pública, doente, passou por verdadeira bateria de exames, cirurgias e reabilitação, dando ares de franca recuperação. Quando perguntamos como isso é possível, a resposta acaba sendo mais simples do que muitos estudiosos da área podem julgar: parcerias. O Grande ABC, dentro da proposta de recuperação, precisou entender que mantém estreitas linhas que dividem seus municípios e ficou claro que o que pertence a um, na verdade, pertence a todos. Para ter essa certeza, basta relembrar das premissas do Sistema Único de Saúde.
De acordo com a Lei Orgânica da Saúde n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, há que se destacar alguns artigos:
Artigo 1º — Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e os serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado.
Artigo 2º — A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Artigo 4º — O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o SUS (Sistema Único de Saúde).
Artigo 7º — As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I — Universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência.
II — Integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.
Não é o momento de concluir que somos donos de todos os serviços públicos, mas é certo que temos direitos assegurados. E é justamente dentro desses direitos que ocorre o desenvolvimento das diretrizes, com delineamento de um planejamento estratégico, fundamental para que as ações tenham resultados.
Nesse contexto, o Grande ABC experimentou a volta por cima. Ao invés de rechaçar a crise procurando culpados, polemizando ações de um ou de outro administrador que passou pela história, buscou alternativas práticas, viáveis e cuja ganhadora foi a população dependente dos serviços públicos, há tanto tempo maltratada. Passados 20 anos da publicação da lei que instituiu o SUS, há clareza do que pode ser feito, do que pode ser construído e oferecido. Quando questionamos se existem pontos de melhoria, a resposta é sim. Existem e são as molas que impulsionam todos os projetos de atenção à saúde. Às vezes as críticas são muitas, as queixas se sobrepõem aos resultados positivos e temos de prestar contas e colocar na mesa as realizações.
E, melhorando aqui e acolá, hoje temos números que denotam a sedimentação de iniciativas a serviço da saúde pública. Já é perceptível a redução de agravos, a diminuição de pacientes exportados do Grande ABC para outros municípios em busca de atendimentos de maior complexidade antes não disponíveis na região e é visível a melhoria dos serviços oferecidos, destacando que a assistência é prestada com qualidade e não somente uma assistência em si.
Alguns indicadores confirmam a melhoria contínua. Os índices de mortalidade registrados em 2006 no Estado de São Paulo foram 22% menores do que os de 2000. A mortalidade neonatal também registrou queda: de 11,5 para nove casos em cada mil nascidos vivos, confrontando 2000 com 2006.
A chegada de serviços estaduais de peso também serviu como divisor de águas na saúde do Grande ABC. A Farmácia de Alto Custo, gerenciada pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, movimenta em média R$ 8 milhões mensalmente na manutenção de estoques de medicamentos de alto custo e uso contínuo para pacientes da região. O Hospital Estadual Serraria em Diadema e o Hospital Estadual Mário Covas em Santo André, inaugurados em 2000 e 2001, respectivamente, devolveram a regionalização de serviços e reforçaram a reorganização dos atendimentos.
Oferecendo mais de 550 leitos entre clínica médica, clínica cirúrgica, infectologia, pediatria, psiquiatria, obstetrícia e leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), os dois hospitais estaduais minimizaram a crise na área e o Grande ABC pôde somar serviços terciários à rede de atenção que já contava com ações primárias e secundárias de saúde (prevenção e pequena/média complexidade).
Crescimento das internações pode
significar que ou acessamos mais
a rede de saúde ou estamos mais doentes
O volume de internações, analisando apenas o Grande ABC, também mostrou importante crescimento. Saltamos de 6.141 internações em 1998 para 8.836 em 2007, conforme dados do DataSUS do Ministério da Saúde. Apesar de importante crescimento, temos de nos preocupar com tais números. Se considerarmos que a população da região expandiu na mesma proporção, pode significar que o aumento de internações é reflexo desse crescimento. Por outro lado, se a oferta de leitos, apesar de crescente, ainda não se mostra suficiente, pode revelar duas novas situações: ou nossa população está conseguindo mais acesso e cuidados adequados às suas doenças, ou nossa população está mais doente.
Observando os números globais de internação na região sudeste do Estado de São Paulo, vemos inversão no volume de internações. Ao contrário do Grande ABC, o sudeste paulista mostrou sensível queda. Em 1998 internava 6,02 para cada 100 habitantes, passando para 5,60 em 2005, conforme levantamentos do Ministério da Saúde. A contrapartida para a queda, ainda analisando a região sudeste do Estado de São Paulo, está em outro dado importante: o número de consulta por habitante. Considerando o mesmo período 1998-2005, houve crescimento de 2,63 para 3,11 consultas por habitante no ano, denotando mais ações preventivas na atenção primária à saúde — estamos falando de fortalecimentos das UBSs nos bairros e de programas que fazem interface direta com moradores, como o Saúde da Família, Agentes Comunitários de Saúde e ações de Combate de Vetores, entre outros de caráter preventivo.
Essas ações são comprovadamente relevantes na redução das internações hospitalares e mostram que quanto maiores forem os investimentos na atenção básica, menores serão os agravos e, consequentemente, os custos das internações. Não é mero jogo de palavras. Para se ter dimensão do que isso representa, basta ver o conceito sobre o qual se lançou o Pró-Saúde, programa federal instituído em 2005 pelos ministérios da Saúde e da Educação para reorientar a formação nas escolas médicas: profissionais generalistas, ou seja, aqueles que estão nos postos de atenção básica, são capazes de resolver 80% dos casos da população sem recorrer a procedimentos complementares cada vez mais custosos.
Trata-se de nova abordagem entre usuários, profissionais e comunidade em busca de uma saúde mais eficiente, mais acolhedora e mais humana, enfim. De mais de uma centena de cursos superiores médicos no País, nossa Faculdade de Medicina da Fundação do ABC desponta com participação inédita: é a única a atuar em três frentes simultaneamente, desenvolvendo a experiência do PróSaúde nas unidades básicas de saúde do Parque Capuava em Santo André, de Santa Terezinha em São Bernardo e do Bairro Fundação em São Caetano.
Voltando ao cenário hospitalar regional, podemos concluir que a oferta de leitos e de serviços está em crescimento e vemos isso como solução para os problemas de saúde pública. Mas há que se verificar o crescimento demográfico e a dependência cada dia maior deste e de outros serviços públicos. Pensando nisso, o Grande ABC deve estabelecer planos municipais ou, ainda, regionais de serviços que tenham abrangência maior do que curar doenças: insisto em que devemos pensar na prevenção. As ações precisam ser sedimentadas em áreas como educação, saneamento e habitação que propiciem qualidade de vida. Não basta apenas ampliar freneticamente iniciativas em áreas específicas como a saúde, assim como é equivocado achar que o foco seja a ampliação de leitos e de unidades hospitalares.
Nessa linha, é notória a participação ativa do Consórcio Intermunicipal, instituído na década de 1990 para representar os sete municípios do Grande ABC em matérias de comum interesse. Uma conquista do Consórcio é gradativamente estar implementando o planejamento regional integrado. E é dentro dos objetivos do Consórcio que os municípios podem e devem estabelecer planos, unidos num mesmo propósito.
Unidades hospitalares são, sem dúvida, importantes em todas as esferas, mas a prevenção realizada de maneira eficaz pode reduzir, e muito, internações por acometimentos passíveis de serem evitados, como complicações por doenças como diabetes e cardiovasculares. E nesse contexto é sempre verdadeiro o conhecido dito popular: “É melhor prevenir do que remediar”.
Na visão do administrador, o cuidado com a assistência é preocupação constante e a qualidade, tema amplamente difundido e aplicado em massa, é fundamental para bons resultados. Mas a outra face da moeda sempre leva a uma questão de primeira ordem: a que custo? Qual o custo de um paciente internado em uma unidade geral? Qual o custo de um paciente em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva)? E quanto custaria esse paciente em acompanhamento adequado nas redes primárias de saúde? A resposta é simples: comparando-se as situações, o custo seria muito menor nas ações primárias, como já afirmamos.
Estas perguntas são aparentemente frias dentro do universo da saúde, mas estão no vocabulário de qualquer administrador, público ou privado, que contabiliza na ponta do lápis cada ação ou decisão a ser adotada. E é com visão administrativa que o planejamento na área da saúde precisa ser elaborado. A prevenção custa menos do que o remédio. Custa menos do que o afastamento temporário ou definitivo do paciente do seu cotidiano, do seu trabalho, do seu convívio social. Aos cofres públicos custa, e muito, manter os serviços, como também arcar com pacientes licenciados do trabalho, onerando o INSS e contribuindo para sua crise, de amplo conhecimento.
Afastado por doença, o trabalhador não
contribui com os cofres públicos e
reduz o bolo de recursos para a saúde
Vivencia-se, então, um ciclo que terminará em desequilíbrio: o trabalhador licenciado não contribui, não produz, não gera crescimento, compromete receitas e consequentemente a arrecadação de tributos que compõem o bolo a ser destinado à administração pública. E a saúde, que faz parte desse grupo, vê sua fatia diminuída, obrigando o administrador a adotar medidas nem sempre democráticas para conter despesas e comprometendo efetivamente os resultados.
Vemos que o Grande ABC tem sido destaque na área da saúde, pois é notória a readequação e reestruturação que cada Município esforça-se em promover.Vemos também que as parcerias público-privadas serão sempre o segredo de alguns bem-sucedidos serviços. Mas as maiores estratégias serão sempre as que tiverem como objetivo implementar a prevenção em todas as áreas.
À medida que o Grande ABC toma como objetivo primordial o desenvolvimento de programas e planos que visem equilibrar ou ao menos minimizar as necessidades de cada habitante, conciliando os serviços, todas as ações poderão ocorrer concomitantemente de modo que o crescimento e a sedimentação de resultados sejam vistos como conquista de todos, e não isoladamente como é comumente observado.
Muito se cresceu, muito se fez e vemos que os resultados são
extremamente favoráveis em todas as esferas. O Grande ABC, que já é favorecido pela acessibilidade geográfica, pela cultura e por agregar importantes pólos industriais e comerciais, além da importância econômica que representa para o Estado de São Paulo, está escrevendo novo capítulo na história, adotando decisões que sem dúvida serão determinantes para bons frutos na área da saúde.
E mais uma luz que se vê no fim deste interminável túnel, ainda que tardiamente passe a ser aplicada, é a regulamentação da Emenda Constitucional n.º 29. Datada de 13 de setembro de 2000, a Emenda 29 tem como missão assegurar recursos mínimos para as ações e serviços públicos de saúde. Determina que o orçamento da saúde seja sempre maior a cada ano, devendo ser corrigido de acordo com a inflação mais a variação do PIB (Produto Interno Bruto). Um destaque é que o Brasil investe muito pouco em saúde: apenas 3,2% do PIB, enquanto Cuba gasta 6,2%, Argentina 5,1% e Uruguai, 5%.
Mais importante do que ser apenas regulamentada é que a Emenda 29 seja praticada, de forma a devolver aos administradores a possibilidade de gerenciar serviços dentro de orçamentos menos hostis, evitando cortes para cobertura de gastos com uma ou outra pasta pública ou que se transfira para outros uma responsabilidade obrigatória do governo de prover recursos para União, Estados e municípios. Ansiamos em ler, em breve, nas manchetes dos principais meios de comunicação do Grande ABC, que toda a história mal traçada na área da saúde pública virou capítulo à parte e o que antes era lamentação transformou-se em palco de comemoração e de reconhecimento pela união de forças e vontades em busca do bem comum.
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16/09/2008 Primeiro escalão dita ética e responsabilidade social