Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Cidades são protagonistas
da solidez regional

CLOVIS VOLPI - 16/09/2008


O século XXI deixou de ser expectativa para o Grande ABC. A virada temporal que povoou mentes com todo tipo de história e até fantasias está em pleno curso e segue o caminho natural das coisas. O homem não ganhou poderes fantásticos, não utiliza naves espaciais para trafegar em poucos minutos de uma cidade a outra e muito menos ensaia qualquer tipo de convivência com seres de outros planetas. Nas sete cidades, a realidade permanece desafiadora e nos convida diuturnamente a superar o histórico de fragmentação que nos roubou riqueza e qualidade de vida. As definições continuam na mão do homem e, como se sabe, o homem sem sua obra perde o significado, seja qual for o tamanho da contribuição.


Qual é então a dimensão de nossa obra em favor da regionalidade?


A pergunta merece reflexões aprofundadas, já que a maioria das assertivas acerca do século XXI era pura ficção e ficou nas páginas dos livros e nas telas do cinema. Infelizmente não temos um robô com voz metálica e superpoderes para resolver em questão de minutos o conjunto de aflições pontuais e conjunturais que hoje nos coloca diante de tantos impasses urbanos, econômicos e sociais.


Também não podemos recuperar o tempo perdido ao simples toque digital na tela como sugere a celeridade dos avanços tecnológicos. As oportunidades não aproveitadas ficaram no passado e, mesmo que ainda pairem dúvidas sobre como será o Grande ABC e o mundo daqui a cinco ou 10 anos, o futuro mais uma vez nos espera para cobrar o resultado das escolhas que fizermos no agora, no presente.


Resultado dos erros e acertos de ontem e das prospecções para o amanhã, o presente tem prazo de validade definido, principalmente para quem tem histórico de divisionismo a superar. O presente requer agilidade, bom senso e, sobretudo, convicção. É certo que não existe a verdade absoluta, mas a crença de que o Grande ABC vive momento propício para construção efetiva de sua regionalidade nos torna cúmplices de um roteiro cujo aperfeiçoamento cabe única e exclusivamente a nós.


Não precisamos mais discutir os benefícios das ações integradas, sabedores que somos todos — ou quase todos — de que muito do que nossas cidades se transformarão em tempos vindouros está diretamente relacionado à disseminação da cultura de integração, das ações de cooperação que seremos capazes de imprimir de agora em diante. Somos uma região repleta de diagnósticos. Alguns ufanistas, outros reais, o fato é que avançamos bastante nesse quesito. Sabemos onde estão os pontos fracos e fortes, mas nos falta encontrar a linha de convergência entre a tênue fronteira que separa o micro do macro, o local do regional, para estabelecer prioridades. Missão bastante espinhosa, acostumados que estamos ao imediatismo de olhar quase sempre para a vida que se desenrola nos limites geográficos de nossos casulos.


Então, mãos à obra, porque ainda temos de aprender — e sem perder tempo — a pensar constantemente no amanhã, a utilizar as valiosas ferramentas do planejamento estratégico, para não deixar escapar novamente o bonde de oportunidades que por displicência, comodismo, ausência de diálogo e até mesmo por falta de conhecimento estacionou noutras paragens em passado bem recente.


As amargas lições de anos de divisionismo ainda estão bastante vivas em nosso cotidiano. Basta olhar em volta. Há levas de miseráveis para incluir, milhares de jovens para empregar, mão-de-obra para qualificar e outro tanto incontável de vagas de trabalho bem remuneradas para reconquistar, só para ficar nos exemplos mais dolorosos. Caso contrário, este território de mais de 2,5 milhões de habitantes continuará a nos comprimir diante da teimosia em não estendermos os olhos para além de fronteiras há muito imperceptíveis, para problemas que pareciam ser de exclusividade e competência única de nossos vizinhos e que desembarcam sorrateiramente, sem cerimônia e sem pedir licença, em nossas salas de visitas.


A contribuição das cidades é fundamental para a construção da cultura da regionalidade. É na cidade que tudo acontece, que a vida pulsa com seus reflexos positivos e negativos — com o desemprego, a insegurança, o caos urbano e o trânsito, com a empresa que chega com novas vagas, as escolas inauguradas, os parques recuperados, a praça que dá cor ao cinza da paisagem. Enfim, com todas as ações que melhoram, pioram ou simplesmente estacionam nosso dia-a-dia.


Por isso, cuidar bem da própria casa é mérito de valor imensurável para escrever por linhas certas o capítulo que sonhamos gravar na história regional do novo século, se possível com final feliz. Quem não se importa com aquilo que é seu, dificilmente perderá tempo com o que não lhe pertence. E quem valoriza o que tem está a meio caminho de compreender o valor de cada ação e de cada gesto para a consolidação de momento tão peculiar.


Não seria ousado afirmar que as cidades do Grande ABC estão com a faca e o queijo na mão para deixar no passado os anos em que vivemos o epicentro do furacão globalizante, que varreu conquistas e esperanças com voracidade idêntica à dos mais temidos fenômenos da natureza. Cada cidade, à sua maneira, protagoniza momento de indicadores positivos, números alvissareiros estampados com frequência na mídia e embalados pela conjuntura global e obviamente por conjunto expressivo de ações localizadas. As manchetes são acalentadoras. Mostram recuperação econômica, criação de empregos, aumento no poder aquisitivo, elevação de vendas, entre tantas outras boas notícias.


A mais perigosa das armadilhas é
persistir na leitura superficial e esquecer
que estamos muito distantes do paraíso


Progredimos, está claro. Os números estão aí para mostrar os avanços e, se contra números não há argumentos, o melhor a fazer é escapar das armadilhas estatísticas. E a mais perigosa seria persistir na leitura superficial e esquecer que ainda estamos a distância considerável do paraíso, esquecer que o excesso de ufanismo já nos empurrou a uma longa e árdua caminhada em busca da luz no fim do túnel. Creio, portanto, que estamos aptos a separar o joio do trigo, a maquiagem da realidade. A curva de crescimento existe, sim. Mas se desenvolve devagar, com percalços aqui e ali, suficientes para nos lembrar a toda hora que ainda faltam muitos degraus para atingir o patamar de solidez desejado.


Voltemos, então, às cidades e à contribuição que cabe a cada Município no fortalecimento do território regional. O administrador público, pela inerência das responsabilidades que lhe cabe, é o artífice principal dessa construção. A solidificação da regionalidade depende sobremaneira da conexão do governante com o mundo e das possibilidades que tem de agregar valor às políticas públicas locais. Depende também da habilidade do gestor de estabelecer prioridades, de planejar e de fazer com que cada obra e ação estabeleçam a interface com a região, com a melhoria contínua do Grande ABC. É fato que os prefeitos não podem descuidar do asfalto nos bairros, dos buracos das ruas, do mato que invade calçadas, da coleta do lixo e do lixo que alguém amontoa em algum canto da cidade porque não respeitou o cronograma do recolhimento. São problemas que afetam a vida cotidiana dos moradores e consomem fatias consideráveis de recursos públicos.


Os investimentos na manutenção da cidade dificilmente rendem manchetes de jornais ou prêmios, mas a amplitude de ações tão cotidianas na rotina das prefeituras pode ter importância diferenciada quando analisada em contexto mais global. Uma cidade limpa e bem cuidada estimula noções de cidadania e civilidade, ponto crucial para disseminação da auto-estima e construção do círculo virtuoso, principalmente quando esse valioso sentimento floresce e cria raízes entre a população. População com auto-estima em alta aprende a gostar da cidade, passo fundamental para aprender a gostar da região. Quem respeita o espaço urbano em que vive não maltrata as ruas, não picha pontos de ônibus nem destrói o que é de todos. Pelo contrário, quer se tornar referência, quer ser exemplo a ser seguido e, o que é melhor, não aceita mais pacificamente qualquer regressão na qualidade da vida urbana.


A melhoria da educação pública é emblemática para explicar a importância da cidadania para a regionalidade. Basta que uma escola pública se destaque em qualquer sistema de avaliação para que se torne case, ganhe páginas de jornais e muita, muita fila para matrículas. Apesar dos conhecidos problemas do sistema educacional, estudar numa escola pública de qualidade é sonho recorrente da maioria. Os gerenciadores de nossos municípios não podem mais fugir a essa realidade. Não podem acomodar-se em apenas executar os percentuais de investimentos exigidos por lei, sob pena de estarem condenando o crescimento de suas cidades.


O cuidado com a educação infantil e de base é certamente a contribuição de maior relevância que as cidades podem oferecer à reconstrução do Grande ABC. Quando uma Prefeitura investe na melhoria contínua do ensino público, planta os alicerces de praticamente tudo o que se deseja para o futuro da região. A máxima de que somente a educação é capaz de transformar alcança tenacidade ainda mais preciosa quando se compreende o valor do conhecimento na formação das futuras gerações, dos futuros moradores, futuros eleitores, futuros líderes, futuros formadores de opinião e, sobretudo, tomadores de decisões políticas e econômicas. E mais uma vez, aqui, as cidades têm a oportunidade de plantar a semente.


De que adiantam estratégias para
atrair empresas e empregos se nossas
crianças estão fora das escolas de ponta?


Se o Grande ABC quer realmente ser grande tem de investir no desenvolvimento intelectual dos cidadãos que tomarão as rédeas daqui a alguns anos. Tem de dar-lhes a oportunidade de disputar em igualdade de condições as vagas nas melhores universidades. Tem de criar, desde os primeiros anos de vida escolar, condições para que concorram às melhores vagas de emprego, que reproduzam conhecimentos e que façam o aprendizado proporcionado lá na escolinha da Prefeitura transformar-se em riqueza para a própria cidade e, consequentemente, para a região.


Senão, de que adiantarão esforços para recuperar nossa atividade produtiva? De que adiantarão estratégias para trazer novas empresas e empregos com valor agregado, se tivermos de lastimar o fato de ver nossas crianças fora das universidades de ponta, depois de termos diagnosticado que o alinhamento da academia com as necessidades mercadológicas é trampolim para conduzir os jovens às melhores oportunidades de trabalho?


Não deve sequer passar por nossas cabeças que daqui a alguns anos poderemos novamente lamentar não dispormos de engenheiros para ocupar vagas qualificadas oferecidas por montadoras, como foi noticiado recentemente. De não termos profissionais para oferecer às empresas pelo simples fato de que a falta de investimento na educação básica — hoje praticamente por conta dos municípios — os impediu de optar por uma formação superior que exige maior destreza em contas, cálculos e equações. Ou pior, que depois de tanta luta para trazer uma universidade federal para o Grande ABC, a UFABC, nossos alunos ficarão de fora ou desistirão do curso por deficiências no aprendizado de base.


Paralelamente à educação, entre tantos outros temas que as cidades têm para pensar e agir regionalmente está a infra-estrutura viária ou mobilidade urbana, na terminologia mais técnica. O excesso de veículos nas ruas deixou de ser problema da Capital, das marginais e das principais vias de acesso ao Grande ABC. O congestionamento está literalmente na porta de nossas casas. Quando não, fica difícil prever quantos veículos vamos encontrar parados no semáforo ao dobrar a próxima esquina. Congestionamento faz perder tempo, dinheiro e qualidade de vida. As cidades, mais do que nunca, precisam estar atentas e ser rápidas na busca de alternativas. O direito de ir e vir é universal e medidas restritivas, está provado, só empurram o tráfego intenso para o endereço mais próximo. Os primeiros debates sobre regionalização datam de pouco mais de 10 anos e a mobilidade urbana já era preocupação recorrente.


Durante todo esse tempo a construção do trecho sul do Rodoanel ganhou destaque quase exclusivo nas discussões sobre o tema porque as relações comerciais globalizadas colocavam – e continuam a apontar — questões relacionadas à logística como ponto imperioso na definição do custo da atividade produtiva e, consequentemente, na permanência ou escolha do território regional como sede de empresa. Há 10 anos, o Rodoanel foi considerado por grande parte da comunidade política e econômica do Grande ABC como o salvador do gargalo da infra-estrutura viária da região, o magnetizador da retomada do desenvolvimento econômico.


Durante anos as discussões e as incontáveis audiências públicas sobre o Rodoanel foram concentradas no impacto ambiental — tema absolutamente necessário, é importante salientar. Colocaram-se em segundo plano, porém, questões igualmente relevantes como o tráfego no entorno da via expressa e os acessos a outros corredores que interferem diretamente no aumento do trânsito em área urbana. Pois bem, o Rodoanel chegou e já se sabe que não vai solucionar todos os problemas viários do Grande ABC. O próprio Dersa estimou que o trecho sul vai acrescer em 150% o número de veículos somente na Avenida Papa João XXIII, em Mauá. Em algum ponto haverá mais carros parados no semáforo, motoristas irritados na fila da conversão ou à procura de rotas alternativas — muito provavelmente nas ruas de nossos bairros porque fizemos a lição de casa pela metade e agora temos de completar o restante o mais rápido possível.


O Rodoanel representa ganho inestimável para a competitividade do Grande ABC, não há como negar. Por isso, é o momento de aproveitar essa conquista para lembrar que o exercício da regionalidade não se esgota nessa obra, nem na UFABC ou num plano integrado de turismo, nos Arranjos Produtivos Locais, numa frente regional de segurança. A regionalidade é uma obra de aperfeiçoamento, na qual se coloca um tijolo a cada dia. É a maior obra que o Grande ABC pode deixar para seus filhos e cuja base está nas decisões tomadas diariamente em cada uma de suas sete cidades.


Vivemos um momento fabuloso. Temos informação, tecnologia,
liberdade de expressão e o privilégio de conduzir os destinos de um Município. Vivemos o momento certo para nos consolidar como território realmente sem fronteiras em que há muito nos transformamos.Vivemos o momento certo para não desperdiçar nenhuma oportunidade de agir no local e pensar, sempre, no global. Vivemos o momento certo para, mais do que nunca, arregaçar as mangas em favor da regionalidade.


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